Pra começar, o que é mitologia de marca?

A mitologia, desde os primórdios da humanidade, mexe com o ser humano, acionando regiões cerebrais que vão gerar emoções, empatia, atração e, principalmente, marcam a memória, tornando inesquecível uma marca, um conceito sobre um produto buscando criar um hábito de consumo. Portanto, o primeiro entendimento sobre mitologia de marca deve ser o dela ser um recurso, um conjunto de ferramentas e métodos de encantamento do consumidor que ampliam exponencialmente as possibilidades de conversão do consumidor, ou seja, que a venda seja efetivada e os resultados apareçam.

O segundo momento de compreensão da mitologia de marca se dá quando verificamos que ela é, na prática, um conjunto sistematizado de campos de conhecimento e ação. Em minha pesquisa de doutorado, concluí que mito é o nome do conjunto formado por outras partes aparentemente isoladas: narrativa, ritual, totem, tempo, magia e arquétipo. Mas esse é um assunto para outro artigo.

O mito da mitologia de marca

O que preciso dizer, e me foi assustadora a descoberta – e sinto muito se isso pode acabar com o humor de muitos consultores e profissionais de marketing! –, mas mitologia de marca é um mito.

Das várias definições de mito, escolho a do sentido de coisa não real, no mesmo nível de lenda urbana. Pois é, mitologia de marca está mais para uma lenda urbana disseminada entre as empresas de publicidade, design e marketing do que de fato algo concreto. Há muito tempo ouço de executivos, designers, publicitários, marketers e empresários expressões como “precisamos refazer a mitologia de marca”, “vou criar mitologias para a marca”, “tem que definir os arquétipos da mitologia de marca”.

Acho uma fala só da boca pra fora, porque a ideia de mitologia de marca, na verdade, não tem sentido para muitos profissionais. Na real, poucos passam perto de uma explicação plausível do que seja a tal mitologia de marca. Levantar o nariz e falar sobre “mitologia de marca” é muito bonito para expressar eloquência, domínio de conteúdo e impressionar o cliente ou o chefe. Difícil é enfrentar a arena dos negócios todo santo dia e gerar resultados satisfatórios para sua organização. Mitologia de marca tem uma existência nos discursos, mas não uma metodologia prática, aplicável e, principalmente, replicável.

E não pense que a academia tem a resposta. No campo da pesquisa científica poucos artigos e livros abordam de forma definitiva essa tal “mitologia de marca”. Muitas possíveis definições estão mais ligadas à arquetipologia da marca, esse conjunto de arquétipos que, como heróis cheios de superpoderes, são convocados por meio de “rituais de criação” para salvar os negócios do seu assessorado.

No campo da arquetipologia temos obras importantes a começar pelo livro Os arquétipos e o inconsciente coletivo, escrito pelo psiquiatra austríaco Carl Gustav Jung. Foi ele quem descobriu e teorizou sobre os arquétipos como matéria-prima do inconsciente coletivo – que funciona como sombra de uma mente coletiva. Outros autores escreveram sobre os arquétipos relacionados às marcas e à publicidade com Sal Randazzo, em seu livro A criação de mitos na publicidade (1997), e as autoras Margaret Mark e Carol Pearson, com a emblemática obra O herói e o fora-da-lei (2012).

Porém, a mitologia de marca não está pautada somente nos arquétipos. Pelos mitos constituírem um tipo de narrativa, também não podemos reduzir a mitologia de marca a um inovador storytelling. A mitologia de marca é mais complexa, mantemos com as marcas uma relação mito-religiosa.

Consumo: a fé na marca

Muito autores e gurus do mercado já anunciaram para todas as direções que a marca representa o principal ativo de uma corporação. Concordo plenamente. E você pode terceirizar quase tudo: produção, planejamento, distribuição, comunicação, espaço físico, menos os significados de sua organização no imaginário do seu público-alvo. Quando eu digo “significados” estou me referindo ao que a simples pronúncia de sua marca tem a capacidade de mover na mente do consumidor – diferentes redes de conexões sinápticas, semânticas, imagéticas, discursivas, entre outras.

Por exemplo, quando cito a marca Apple logo saltam pela minha cabeça pensamentos sobre tecnologia, ostentação, inovação, quebra de padrões, Steve Jobs, oratória apaixonada e apaixonante, o arquétipo do fora-da-lei. Cada consumidor é um ser único, com pensamentos e comportamentos singulares, no entanto, a neurociência – cada vez mais presente no campo da pesquisa biocultural – comprova que nossos desejos são moldáveis a ponto de termos nossos comportamentos, hábitos, pensamentos e imaginários condicionados pelas grandes corporações com sua comunicação inteligente.

Leitura obrigatória para executivos e comunicadores, o livro Sapiens, uma breve história da humanidade (2011), autoria do historiador e professor israelense Yuval Noah Harari, apresenta uma outra função do mito que é bastante categórica. Ele responde à principal pergunta das marcas que desejam conquistar corações e mentes dos consumidores. Ele dá os caminhos das pedras quando explica que uma das principais funções do mito é coordenar coletivamente os pensamentos de um grande número de pessoas. Em outros termos, se muitas pessoas acreditam no mesmo mito, fica fácil condicionar verdades, formas de ser e estar no mundo, oferecer a coisa mais concreta que existe, a fé. Entendo o conceito de “fé” como elemento mais concreto e poderoso, mais que o objeto desejado. Posso calcular ao máximo, ultrapassar os limites da capacidade humana na física e na matemática para explicar a formação do universo, posso passar a vida toda obcecado com isso, mas se eu acreditar que um deus criou tudo num piscar de olhos, tudo se resolve, não precisa mais de recálculos nem obsessões. Esse é o poder do mito: ele resolve tudo, dá uma resposta para tudo, alimenta o imaginário e renova a esperança. Essa é a concretude da fé.

Até posso questionar cientificamente a existência de Deus, mas não questiono a existência da fé em Deus. Ela existe, é real e, de fato, move as montanhas do desejo humano.

O flerte entre o consumo e o sagrado

Basta olhar ao nosso redor e verificarmos que algumas marcas são cultuadas. Observe de modo mais atento e constate que as inúmeras tipologias de coachs possuem um eixo discursivo claro: seu storytelling (ou a forma como ele narra os fatos, sua retórica) é praticamente religioso ou, minimamente, espiritualista. Um meme traz a seguinte definição: “coach é o pastor de ateu”. Com todo respeito aos amigos desse segmento de mercado, mas o meme não está totalmente errado e indica que é necessário rever certas práticas da profissão. Esse exemplo é para nos atentarmos para a discursividade das coisas. O discurso do coach não foi sua invenção. Tudo na cultura está interligado, tem fundamento e é híbrido. De algum lugar saiu essa estrutura narrativa do coach, e a principal suspeição cai sobre os ambientes religiosos.

Outro exemplo: um dia, mesmo que você não tenha afinidade com a cultura pop, observe de forma mais demorada seus cantores, atores, esportistas. Logo descobrirá que tal qual um profeta, várias celebridades possuem mais que fãs, elas conquistaram “seguidores” e os fã-clubes beiram uma instituição religiosa.

Nunca esqueço que palavra propaganda, no sentido usado de divulgar ideologias (desde 1622), surgiu quando o Papa Gregório XV criou em 1622 a Congregação para Propagar a Fé (Congregatio de Propaganda Fide), uma comissão com o objetivo de difusão do catolicismo em países não católicos. Hoje, quatro séculos depois, a difusão da fé é realizada não apenas por todas as religiões, mas, principalmente, pelas marcas. Fidelizar significa tornar (um cliente ou um consumidor) fiel a uma marca, produto ou serviço.

Com tudo isso que acabei de explicar, entendo de maneira holística a fala do antropólogo do consumo, o professor Everardo Rocha, da PUC-Rio. Ele afirmou na primeira edição do Consumo Sul (2013), principal evento sobre consumo e modos de vida da região Sul brasileira, que há uma relação muito próxima entre o consumo e o sagrado. Tão próxima que podemos afirmar que o consumo é a nossa principal experiência com o sagrado. É aí que entra a mitologia de marca.

Mitologia e a experiência sagrada

O brasileiro tem uma gama de religiões, além do catolicismo e as pentecostais. Umbanda, Candomblé, Espiritismo, Seicho-no-ie, Rosa Cruz, Pajelança, Catimbó são apenas outros exemplos de padrões não hegemônicos de manifestação mito-religiosa. O mercado religioso nacional pode ser assunto para outro momento, agora o importante é compreendermos que fazer parte de uma religião representa um processo constante de alimentação do imaginário mítico que habita em cada um de nós. Afinal, acreditar em seres sobre-humanos, espíritos, vida após a morte e paraíso são elementos puramente míticos.

Apenas quero finalizar o artigo dizendo que por mais modernos, científicos e lógicos, ainda temos a necessidade do simbólico mítico pulsando em nossa essência. Graças à matéria-prima da memória coletiva (arquétipos), aos mitos (a encenação dos arquétipos) e aos sistemas mito-religiosos que a mitologia de marca encontrou um campo fértil para florescer.

Por isso mesmo que hoje encontramos todos os elementos presentes nas narrativas mito-religiosas, mas com outra cara. Na publicidade os deuses (celebridades e modelos), as fantasmagorias (imagens), os elixires mágicos (produtos e marcas), os heróis e guerreiros (consumidores), os demônios (as diferentes necessidades atendidas pelo marketing), a narrativa mítica (storytelling), os hábitos de consumo (rituais), os magos (os diretores de arte) todos estão à solta pelos becos, ruas e praças da sociedade do consumo.

Muita gente pode achar estranho (um pecado?) a ideia de relacionar fé, religião e consumo. Não adianta “tapar o sol com a peneira”, como diria mi abuela, pois o mercado da fé é competitivo, estrategista e nada inocente. No mercado religioso, cada religião é um produto, cada instituição possui estratégias de marketing e comunicação muito bem definidas, que as religiões competem e as instituições da mesma religião também competem pelos fiéis.

E o fiel, hoje, é um consumidor que escolhe sua religião como uma roupa, um produto no supermercado, pois ser fiel a uma religião tem várias demandas: dinheiro, tempo, trabalho físico, atividades presenciais, transporte, solidariedade, caridade. Mas quase nunca pensamos que, mesmo se você for ateísta convicto e, no entanto, vive em uma sociedade do consumo, possivelmente, você está vivenciando ou colocando em prática, mais do que você imagina, seu imaginário religioso.

"A religião é o ópio do povo", escreveu Karl Marx na introdução do livro Crítica da filosofia do direito de Hegel (publicado em 1844). Ele não podia imaginar onde chegaríamos. A mitologia de marca – produto da combinação entre neurociência, storytelling e imaginário ancestral – é a nova religião do consumidor. Ou, em termos Marxistas, o novo ópio do povo.

H. Z. Wendell