Para que servem os mitos?

De uns tempos para cá, falamos muito sobre "mito" no Brasil. Posso até mesmo afirmar que, para o senso comum, toda vez que toco no termo “mito”, a nossa memória associativa entra em ação e já nos apresenta um uso político. E para compreender melhor a mitologia no mundo dos políticos e das campanhas eleitorais, recomendo a leitura do livro “Mitologias políticas”, do historiador francês Raoul Girardet. O autor aprofunda sua análise em quatro tipologias míticas de governantes que, de tempos em tempos, as massas demandam para salvar do mármore do inferno sua política, cultura, economia. Bem interessante e revelador.

Por outro lado, o mito também significa uma celebridade da cultura pop (um ídolo) ao nível de Elvis Presley, Michael Jackson, Beyoncé, Madonna, Shakira, Ivete Sangalo, Gustavo Lima, Anitta, sem falar em ídolos do esporte, do jornalismo, do cinema, dos games, das HQ, das telenovelas para citar alguns. Vivos ou mortos, certamente, você tem seus próprios ídolos.

Mitos também existem na cultura pop acadêmica. Pesquisadores e cientistas que descobriram fórmulas, conceitos e que criaram uma nova metodologia ou uma nova forma de olhar o mundo - se tornaram verdadeiros mitos. Cada área de conhecimento cultua seus próprios mitos. Na área das ciências humanas, posso citar Canclini, Baumann, Foucault, Benveniste, Ducrot, Saussure, Peirce, Jung, Freud, Orlandi, Didi-Huberman etc. A lista é praticamente infinita. Mito pode ser alguém com uma determinada autoridade em um assunto ou área de conhecimento, mas também pode significar algo muito próximo à ideia de folclore, lenda, fábula.

Mito, inclusive, pode conter um sentido de ignorância. O mitólogo americano Joseph Campbell (1904-1987) tem uma frase famosa que diz:

— Mitologia é o nome que damos às religiões dos outros.

Com essa ideia, já entendemos que todas as religiões são, bem na verdade, um conjunto de mitos. E se você é um seguidor de alguma religião está colocando em prática seu imaginário mítico. E alimentar nosso imaginário é uma necessidade, esse insight as religiões, os políticos e o consumo já tiveram há muito tempo.

Mito no senso comum

O senso comum ainda carrega a imagem do mito como algo do passado, antigo, pouco provável e em oposição à imagem da ciência que se fez objetiva, metodológica, comprovativa, verdadeira, que opera com dados concretos. O fato é que não dá pra datar o surgimento do mito. Ele faz parte da nossa evolução como espécie, com todo nosso complexo simbólico, cultural e arquetípico. O mito, como o senso comum conhece, se apresenta em narrativas, histórias fantásticas repletas de personagens igualmente fantásticos, cenários fabulosos, situações que requerem soluções mágicas e é tudo muito reflexivo. O mito fala para algo dentro do nosso cérebro, onde habita o nosso Eu.

Neste sentido, o mito foi a nossa primeira forma de narrativa. Sua função inicial foi explicar a realidade. Como surgiu uma montanha, uma planta, um medicamento, um alimento, uma atividade humana, como surgiram os animais, como surgiu o homem e como tudo isso um dia vai desaparecer (mitos escatológicos, que não os mitos do fim do mundo e a narrativa do dilúvio bíblico é o exemplo mais conhecido).

As quatro funções do mito

Mas o mito surgiu, com certeza, antes da primeira narrativa, antes da fala, antes da linguagem. Antes de falar e dizer, o ser e o sentir já existiam. Conforme Joseph Campbell, mitólogo americano e consultor dos primeiros filmes da saga Star Wars, em seu livro Mito e Transformação, ele nos apresenta quatro funções básicas:

1) A busca pelo equilíbrio entre natureza e cultura, entre a natureza e o homem. O mito, então, representa o retorno ao estado primordial do homem, à sua ancestralidade, ao momento inconsciente em que homem e natureza eram um só ser. Neste sentido, entrar em contato com os mitos significa a volta a um estado de inocência, pureza, natural, algo semelhante a matar uma “saudade primitiva”. Uma amostra grátis da volta ao paraíso.

2) Outra função é a de servir como modelo. Os deuses do Olimpo são um bom exemplo: criados pelo homem, servem de modelos para o homem seguir em sua vida terrena. Assim, todas as religiões criaram ou mitificaram seus profetas, santos, cristos, deuses. O homem criou os deuses para que os deuses o recriassem.

3) O mito existe para manter nosso deslumbramento perante a imensidão do cosmo. O poder da natureza, a profundidade do oceano, o desafio do deserto, os mistérios da floresta, a complexidade do inconsciente e até mesmo o imenso e obscuro vazio do nosso Eu. O mito, portanto, serve de encantamento, deslumbramento, é sempre entorpecedor da alma humana.

4) A última função é a de ser um grande “psicólogo” da humanidade. O mito acompanha os grupos humanos do começo ao fim, da fundação ao fim do mundo. Acompanha o indivíduo do nascimento à morte, preparando-o para aceitar o fim inerente. É, inclusive, pautadas nesse aspecto que a maioria das religiões e filosofias de reencarnação/paraíso conquistam as massas.

Por fim, o mito foi importante para “segurar a onda” da espécie humana, isto é, não foi fácil nos tornarmos a espécie dominante no planeta. Desta maneira, o mito contribuiu (e ainda contribui através do consumo!), para acalentar, dar respostas, ajudar na sobrevivência do homem. A mitologia de marca nada mais é que a manutenção das funções do mito por meio dos sistemas do consumo.

 

H. Z. Wendell

 

Para saber mais:

CAMPBELL, Joseph. Mitologia na vida moderna: ensaios selecionados de Joseph Campbell. Trad.: Luiz Paulo Guanabara. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2002.

CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. Trad.: Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Pensamento, 2007.

CAMPBELL, Joseph. Mito e transformação. Trad.: Frederico N. Ramos. São Paulo: Ágora, 2008.