Mitologia, ritual e suas relações

Muita gente pergunta e até mesmo confunde mitos e ritos. Mitologia e ritual são interdependentes, isto é, se complementam e se ajudam em uma relação simbiótica, mas não são a mesma coisa. O ritual é um sistema de ritos. Mitologia um conjunto de mitos. O ritual é a dimensão prática e, muitas vezes, visual do mito. Como diria Jung, o mito é encenação dos arquétipos. Esse conceito é muito interessante, pois quando observamos a aplicação dos arquétipos na criação publicitária – aqueles 12 arquétipos que nos foram apresentados pelas autoras americanas Margaret Mark e Carol Pearson – vemos justamente a sua encenação em narrativas (storytelling) agregando discursos simbólicos a marcas e produtos. Não tem jeito, eu vejo a publicidade como a prova cabal de que os mitos ainda estão vivos entre nós, pois seu sistema cultural, criação e movimento social são muito semelhantes ao sistema de criação e circulação dos mitos.

Se mitologia fosse gramática, o mito seria o sujeito, enquanto ritual seria o verbo. Em outras palavras: o mito opera no ser e o ritual no agir (ele é a encenação, lembra?). Conforme explica a antropóloga Mariza Peirano (2003), o ritual tem dupla função: é um fenômeno especial que revela representações e valores sociais, ao mesmo tempo em que expande, ilumina e ressalta o que já é comum ao grupo, atrai olhos, ouvidos e pensamentos para alguma coisa que passava despercebida. Você percebe que essa característica do ritual é algo muito próximo ao papel da publicidade no mercado? Os rituais de consumo, reforçados pelas narrativas publicitárias, também apresentam essa dupla função. Mitologia e ritual são um espelho da cultura, conforme o antropólogo do consumo Everardo Rocha (2010), mitos e ritos formam um conjunto que “destaca, focaliza, aproxima-se, coloca em close-up suas questões, impasses, dúvidas e paradoxos”.

Mito e ritual são indissociáveis

Onde há mito há ritual. Onde há ritual há mito. Por exemplo, para quais mitos os ritos “ir ao cinema” e “consumir imagens e narrativas do cinema” apontam? Para vários, eu diria, pois cada filme é um novo mundo fundado, como disse em sua tese intitulada "Chuva de cinema", o professor da Unicamp, Wenceslao Oliveira Jr. O monomito do herói é um dos mitos amplamente disseminados nas narrativas do cinema e das séries, e muito usado entre as técnicas de storytelling da publicidade. O monomito (ou mais conhecido como a jornada do herói) foi proposto por Joseph Campbell a partir dos estudos de mitologias de várias partes do mundo. Todas elas mantinham narrativas com mesma estrutura arquetípica para narrar uma aventura de um guerreiro, uma das personas do arquétipo do herói. Ele concluiu que todas as culturas possuem uma história de um herói que chamado para uma aventura de conquistas e autoconhecimento.

Os estudos foram metabolizados pelo roteirista americano Christopher Vogler no livro The writer’s journey: mythic structure for writers nos anos 1990. Ele escreveu em forma de memorando e, com base nos estudos campbellianos, selecionou 12 etapas da jornada do heroi e fez circular entre os roteiristas da Disney. Ele até foi acusado de “formularizar” os roteiros da marca nos anos 1990. De fato, é muito fácil identificar os arquétipos da jornada do herói nos filmes da na retomada da Disney com a Pequena Sereia, Aladdim, A Bela e a Fera, O Rei Leão, Mulan, Pocahontas, entre outros.

O que eu quero dizer, só para citar como exemplo, é que as animações da Disney dos anos 1990 possuem a mesma estrutura: o herói, o vilão, os personagens cômicos, o encontro com o mestre, o mergulho na caverna escura etc. É isso que chamo de consumo ritual – porque o principal vestígio do ritual é a repetição – que o antropólogo Mássimo Canevacci chamou de "sempre mais do mesmo", ou seja, ritualisticamente se aproveitou de uma memória ancestral mítica e criou um tipo de condicionamento do consumo midiático tão forte que a maioria das pessoas não conseguem assistir a filmes  que possuem outra lógica diegética, os classificam como chatos.

A sala escura do cinema

O ambiente da sala escura é um espaço ritual, é o mergulho na caverna em busca do nosso eu. Olhar um filme não modifica diretamente o cotidiano, mas a perspectiva do espectador em relação a esse cotidiano. E isso também é uma característica de um ritual.

“A matéria-prima com a qual se organiza o mundo do cotidiano e o mundo do ritual é idêntica. Dos mesmos materiais vivem o ritual e o cotidiano. Apenas o momento ritualizado revela uma combinação particular desses materiais. A diferença entre um e outro não é de essência, mas de posição. A combinação, numa determinada perspectiva, dos elementos e relações sociais do cotidiano é o que produz o momento ritualizado” (ROCHA, 2010, p. 181).

Um dos traços do ritual é a repetição, a redundância. Nosso mundo é redundante. As imagens voltam sempre, reapresentam-se, representam, presentificam a realidade. As imagens do cinema são o eterno e ritualístico retorno das mitologias. As estruturas narrativas sempre se repetem. Ambiente da transcendência, a caverna escura do cinema, da sala em sua casa ou do aparelho de celular nunca deixará de ser um espaço de reencontro com a magia, o sagrado e a própria identidade do ser humano.

Quase sempre, nunca associamos o termo ritual à vida urbana, no sentido mítico, mágico ou, pelo menos, antropológico. Julgamos que tais rituais são coisas das sociedades primitivas, pré-industriais. A ciência nos desencantou e o reencantamento do olhar é uma árdua jornada por parte das marcas que atuam em todo mercado do audiovisual no Brasil e no mundo. É uma pena que o reencatamento das pessoas seja exclausivamente por meio da mídia, das tecnologias e do consumo, ganhando mais a atenção do consumir do que as artes, as experiências reais e os afetos nascidos do contato com outros seres humanos.

 

H. Z. Wendell

 

Para saber mais:

PEIRANO, Mariza. Rituais ontem e hoje. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

ROCHA, Everardo. Magia e capitalismo: um estudo antropológico da publicidade. São Paulo: Brasiliense, 2010.